Monday, November 21, 2005

Não resisti.

" Ficámos ali horas trocando nadas, simplesmente adiando tempo. E ela me contou: Havia um lugar onde o tempo não tinha inventado noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse: - Hoje farei o meu último voo! - As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. (Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.)
(...) Todas as aves se juntaram. Perguntavam: - Mas vai voar para onde? - Para um sítio onde não há nenhum lugar. - O flamingo chegou e explicou - que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira. E continuava: - Aquilo é longe, mas não é distante. - (...) Ele queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz... Olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu vertebrava e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Nascia, assim, o primeiro poente. Era o ponto final. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.
(...)
- Vamos esperar. Esperar por outro voo do flamingo. Há-de vir um outro.
Me perguntei se aquele não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo... "
(Texto de Mia Couto em 'O Último Voo do Flamingo')

« Há-de vir um outro. »
Inês
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